A cilada da desobediência e o culto
Texto básico: Deuteronômio 7.1-26
Introdução
No primeiro número de Imprensa Evangélica (1864), primeiro jornal protestante impresso no Brasil, no editorial, certamente escrito por Ashbel Green Simonton (1833-1867), lemos: “Todas as religiões têm em comum o fim que pretendem conseguir. Todas elas reconhecem como axioma fundamental, que a raça humana padece tantas e tão grandes necessidades, que é mister um remédio sobrenatural. Qualquer sistema que não reconheça a necessidade de buscarmos fora de nós as forças indispensáveis à nossa felicidade, não passa de um sistema filosófico. O sobrenatural é a linha divisória entre a filosofia e a religião” – (destaques meus).
Podemos observar que se a religiosidade é companheira inseparável de todas as culturas, a adoração cúltica é uma expressão da religiosidade de cada povo. A forma de culto varia de religião para religião e esta, por sua vez, assume características próprias em cada povo.
A adoração é imperativa do mesmo modo que a religião é própria do homem: desta forma, não podemos separar a adoração da religião.
Observando a prática litúrgica dos povos antigos, podemos perceber que em sua maioria há a ideia de sacrifício animal e humano, como expressão de adoração. Temos essa prática entre os egípcios, assírios, babilônios, persas, indianos, chineses, saxônios, etc. Heródoto (c. 484-420 a.C.), por exemplo, narra em sua História que o rei de Tiro ofereceu seu filho para obter prosperidade, tendo os cartagineses o mesmo costume.
Heródoto também descreve uma tradição cartaginesa que conta de forma dramática a morte do rei de Cartago, Amilcar (c. 290-229 a.C.): “Dizem eles [os cartagineses] que a batalha que os bárbaros travaram com os gregos, na Sicília, durou desde o romper da aurora até o anoitecer, e que Amilcar permaneceu firme no campo da luta, imolando vítimas, cujas entranhas lhe auguravam grandes sucessos, queimando-as inteiras numa vasta fogueira. Tendo, todavia, percebido, enquanto fazia libações sobre as vítimas, que suas tropas batiam em retirada, atirou-se ele próprio ao fogo, sendo logo devorado pelas chamas”.
Platão (427-347 a.C.), um dos maiores filósofos gregos, coloca nos lábios de Timeu a constatação de que todos os homens invocam os seus deuses, buscando assim ajuda para os seus empreendimentos, quer grandes, quer pequenos: “[…] todos os homens, por menos que participem da sabedoria, ou quando estão a ponto de encetar um empreendimento pequeno ou grande, sempre de alguma maneira, invocam a divindade”.
Até mesmo os judeus, em momentos de profunda decadência espiritual, experimentaram semelhante prática, copiando o modelo pagão e, consequentemente, tornando-se pior do que eles, quer em sua prática, quer, principalmente, pelo fato de usufruírem o conhecimento da revelação especial de Deus. Comecemos do início:
I. Autonomia secular
Desde a Queda de nossos primeiros pais, Adão e Eva, um dos desejos característicos do ser humano é a sua autonomia; a capacidade de escolher sem constrangimento. Ironicamente, com a rebelião da criatura contra o Criador, o homem perdeu o que tinha julgando conseguir o que ignorava possuir. O homem se tornou escravo do pecado, morto espiritualmente, dominado por toda sorte de paixões (Jo 8.32-34; Rm 3.23; 6.23).
O secularismo consiste na pretensão humana em ser autônomo, reduzindo a realidade à nossa percepção limitada do concreto: o real é o concreto ou o que do concreto se pode perceber. Aqui temos uma questão epistemológica. No secularismo, a criatura assume o lugar de Criador (Rm 1.25); Deus é descartado ou, no mínimo, colocado em um lugar decorativo onde a sua presença não é notada nem a sua falta sentida. Aqui temos um “ateísmo prático.” Notemos que a autonomia sempre será heteronômica, visto que não há alternativa: ou servimos ao pecado – ou seja, a nós mesmos –, ou servimos a Deus, em quem de fato temos uma “autonomia teológica”. Sproul percebe bem o problema ao dizer: “A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o homem como a medida de todas as coisas”.
A Palavra nos diz que Jesus Cristo morreu, segundo a vontade de Deus, para nos libertar do domínio do mundo, dos valores da mundanidade que contaminam nossa maneira de perceber e atuar na realidade, a fim de que vivamos para ele. A Carta aos Gálatas declara: “O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1.4).
Infelizmente, de forma cada vez mais acentuada, o secularismo, com um verniz religioso, tem invadido as nossas igrejas e os nossos cultos, a despeito de nossas sinceras boas intenções.
II. Abel e Caim: a liturgia da vida
Quando vamos ao livro de Gênesis, encontramos, após o pecado de nossos primeiros pais, seus filhos, Abel e Caim, oferecendo culto a Deus; cada um apresentando as primícias do seu trabalho; no entanto, devido à falta de fé de Caim, que se manifestava em um comportamento pecaminoso, Deus não se agradou dele e consequentemente de sua oferta; o seu coração não era reto diante de Deus (Gn 4.3-7; Hb 11.4,6).
Vemos que Deus, de alguma forma, já explicitara como queria ser adorado. Percebemos também a necessidade humana do culto a Deus e, ao mesmo tempo, de um culto que se refletisse na obediência a Deus. “A adoração se consuma não no ritual do sangue dos animais, mas na rendição voluntária da vida do adorador para que obedeça continuamente à vontade de Deus” (Leslie S. M’Caw). Aliás, a prática do sacrifício instituída por Deus visava nos mostrar a necessidade que temos de purificação e de perdão.
Calvino, comentando Hebreus, interpreta: “Ele diz, antes de tudo, que o sacrifício de Abel foi mais aceitável do que o de seu irmão tão somente porque foi santificado pela fé; certamente que a gordura de animais irracionais não cheirava tão agradavelmente que fosse capaz de atrair a Deus com seu odor. A Escritura mostra nitidamente por que Deus se agradara de seu sacrifício. Eis as palavras de Moisés: ‘e atentou o Senhor para Abel e para sua oferta’, à luz das quais podemos prontamente concluir que seu sacrifício agradou a Deus em virtude de ele mesmo ser agradável a Deus. De que outra fonte veio seu agradável caráter senão do fato de que possuía um coração purificado pela fé?” (destaques meus).
É preciso que entendamos que a espontaneidade do amor não exclui a obediência, nem esta aquela. A obediência não significa necessariamente – como normalmente querem nos fazer crer –, sujeição servil. A obediência cristã a Deus e à sua Palavra é um ato de amor. Comentando o salmo 40.7, Calvino assim se expressa: “Aqui verdadeira obediência apropriadamente se distingue de uma constrangedora e escrava sujeição. Todo serviço, pois, que porventura os homens ofereçam a Deus será fútil e ofensivo a seus olhos a menos que, ao mesmo tempo, ofereçam a si próprios; e, além do mais, este oferecimento por si mesmo não é de nenhum valor a menos que seja feito espontaneamente”.
III. A cilada da desobediência
Deus prescreve, no Antigo Testamento, o modo como deseja ser adorado e, ao mesmo tempo, adverte o povo de Israel, quando se dirigia à Canaã, para que destruísse todos os lugares de culto pagão: “Porém assim lhes fareis: derribareis os seus altares, quebrareis as suas colunas, cortareis os seus postes-ídolos e queimareis as suas imagens de escultura” (Dt 7.5/ Dt 7.16; 12.2-3,29-31; 16.21–17.1-7).
Israel deveria se guardar de aprender as práticas pagãs dos povos estrangeiros: “Quando entrares na terra que o Senhor, teu Deus, te der, não aprenderás a fazer conforme as abominações daqueles povos” (Dt 18.9 – ver também Dt 20.18).
Israel não atendeu plenamente a ordem divina (Js 11.20; 24.23; Jz 1.27-2.3) e toda a sua história foi marcada por guerras e atos de idolatria, seguidos da disciplina de Deus, arrependimento e nova queda.
A desobediência do povo se tornou a sua própria armadilha. A Palavra de Deus, como sempre, se cumpriu: “[…] os seus deuses vos serão laços” (Jz 2.3; Dt 7.16). O salmista resume: “Não exterminaram os povos, como o Senhor lhes ordenara. Antes, se mesclaram com as nações e lhes aprenderam as obras; deram culto a seus ídolos, os quais se lhes converteram em laço” (Sl 106.35-36). A idolatria de Israel só foi curada após a volta do exílio babilônico.
IV. Consequências da idolatria
A condenação dos idólatras é a de se tornarem inertes, sem vida como as obras de suas mãos. A idolatria torna os homens cativos de uma forma viciada de pensar. O produto de nossos raciocínios se torna nulo em sua própria elaboração. As evidências da revelação são sempre ocultadas em seus corações dominados por uma forma viciada de pensar e determinantemente horizontal (Rm 1.19-21).
Schaeffer (1912-1984) comenta: “Quando a Escritura fala do homem agindo desse jeito tolo, não significa que ele é apenas religiosamente tolo. Antes, significa que ele aceitou uma posição que é intelectualmente tola, não somente com respeito ao que a Bíblia diz, mas também em relação àquilo que existe – o universo e sua forma, e a humanidade do homem. Ao se afastar de Deus e da verdade que ele deu, o homem ficou tolamente tolo em relação ao que o homem é e ao que o universo é. Ele é deixado em uma posição com a qual ele não consegue viver, e ele é pego numa multidão de tensões intelectuais e pessoais”.
Ao que parece, a idolatria, já como resultado da obscuridade espiritual, elimina boa parte de nossa sensibilidade espiritual, brutalizando-nos, amortecendo certas faculdades nossas. “Todos sabem que existe um Deus e que devemos cultuá-lo; mas tal é o vício e a ignorância que reinam em nós, que desse confuso conhecimento passamos imediatamente para um ídolo, e assim o adoramos no lugar de Deus. E até mesmo no culto devido a Deus, nos desviamos, particularmente na primeira tábua da lei” (João Calvino). Por isso, é que a idolatria nunca vem sozinha, ela sempre está acompanhada de outras práticas irracionais e pecaminosas.
O salmista, comparando a grandeza de Deus com os ídolos feitos pelos homens, arremata: “Como eles se tornam os que os fazem, e todos os que neles confiam” (Sl 135.18). Este conceito encontramos também em Oseias, quando relembrando o pecado do povo de Israel no deserto, diz: “[…] mas eles foram para Baal-Peor, e se consagraram à vergonhosa idolatria, e se tornaram abomináveis como aquilo que amaram” (Os 9.10).
A idolatria traz um desequilíbrio no cerne do pensamento humano, se manifestando em todas as outras áreas de sua vida, ainda que nem sempre de modo imediatamente perceptível. Ela tende a ser desagregadora do caráter ainda que possa se esconder sob a capa da compreensão tolerante. É uma doença espiritual resultante da carência de Deus e da procura equivocada do sagrado.
Calvino enfatiza: “Todos os ídolos devem transformar-se em nulidade, visto que não representam nada no seio dos piedosos. Aqueles que não cultuam o verdadeiro Deus, por mais que multipliquem as modalidades de seus cultos, por mais que os ataviem com toda sorte de cerimônias, continuarão sem Deus! Porquanto adoram o que não conhecem”.
O sentimento religioso, sem o direcionamento do Espírito Santo, por meio das Escrituras, torna a religião em mera antropologia: a minha religião reflete a minha percepção pecaminosa do mundo e de mim mesmo. A religião, portanto, fora dos ensinamentos das Escrituras não passa de superstições humanas que, psicologicamente analisadas servem para evidenciar “a confissão dos seus mais íntimos pensamentos” (L. A. Feuerbach). Deste modo, ao longo da história, as “teologias” que deveriam ser relativas à Revelação têm sido relativas ao homem, tornando-se assim, antropologias.
A idolatria é sempre odiosa a Deus. O homem em seus devaneios pecaminosos substitui o Deus da glória por diversas divindades, e estas nada podem fazer para satisfazer as suas reais necessidades. Deus não compartilha com os ídolos de sua glória: “Eu sou o Senhor, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra às imagens de escultura” (Is 42.8).
O homem na construção de seus “fantasmas mitológicos”, não consegue reconhecer o Deus verdadeiro quando se depara com ele, antes, prefere trazer Deus à sua condição estreita e pecaminosa. Por isso, parece-nos estar correta a observação feita por Sproul que, “a idolatria representa o insulto máximo a Deus. Reduzir Deus ao nível da criatura é despojá-lo de sua divindade. Isto é particularmente odioso a ele em face do fato de todos os homens terem recebido suficiente revelação sobre ele para saber que não é uma criatura”.
Paulo, no Novo Testamento, diz que Deus entregou tais homens a si mesmos, de tal forma que a sua conduta tornou-se extremamente corrompida, manifestando-se em toda forma sórdida de paixões (Rm 1.18-32).
Conclusão
Como vimos, a prestação de culto a Deus faz parte do propósito divino para criação humana. Deus nos criou para cultuá-lo em reconhecimento àquilo que ele é e, também, considerando os seus atos abençoadores em nossa vida.
A obediência aos preceitos de Deus traz sempre consigo elementos decorrentes de sua inclusão. Aliás, tanto a obediência quanto a desobediência a Deus carregam consigo resultados diretamente relacionados aos preceitos específicos, bem como outras consequências, ainda que não prescritas de forma direta à instrução específica, estão relacionadas aos mandamentos mais amplos registrados na Palavra de Deus.
A obediência a Deus não tem um contraindicativo interno. Os mandamentos de Deus são todos inclusivos. Deus nos libertou em Cristo para obedecer aos seus preceitos. A desconsideração da Palavra nos conduz por caminhos tortuosos que trazem consequências sérias para a nossa vida. O culto a Deus é uma oferta de nós mesmos; uma consagração pessoal ao Senhor. Por isso, o culto não começa nem termina na solenidade em si – por mais relevante que ela de fato seja –, antes se estende por uma liturgia de vida de obediência. Sejamos, portanto, obedientes a Deus, inclusive em nossa forma de adorá-lo, com a santa alegria de poder ser fiel ao nosso Senhor.
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