quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

No mundo, mas não do mundo

No mundo, mas não do mundo

Texto base: João 17.1-19 

Introdução

O cristão está no mundo. Jesus intercedeu por sua igreja pedindo ao Pai que não nos tirasse do mundo. Estamos inseridos neste contexto de coisas trazidas à existência por obra do Criador, somos homens e mulheres criados conforme a imagem de Deus e com a tarefa de estabelecer relacionamentos e interagir biblicamente com o mundo à nossa volta. Mas como fazer isso de modo que Deus seja glorificado? Como evitar que nossa vida se torne mundana, secularizada?
Neste trimestre,[1] nosso assunto é o cristão e a cultura. Somos cidadãos dos céus, mas com a responsabilidade de trazer luz a este mundo, cujos valores se distanciam do que agrada a Deus.

I. O grande problema

A igreja evangélica tem se esforçado para ser relevante como sal da terra e luz do mundo (Mt 5.13-14), mas geralmente tem adotado dois extremos perigosos: (1) Tornar-se um gueto, um grupo isolado, somente voltado para os exercícios religiosos, inoperante e irrelevante para a sociedade, uma luz que não brilha; (2) Firmar um diálogo aberto com o mundo, tanto empenhando-se em aprender o idioma do mundo que perde sua própria essência. Portanto, é urgente discutir a questão biblicamente a fim de adotarmos uma postura equilibrada, que esclareça os crentes sobre qual é a atitude correta em relação à cultura.
O fundador do departamento de História da Universidade Livre de Amsterdã, professor Rookmaaker, com precisão argumentou sobre um desses extremos, o qual envolve a prática do que ele chama de espiritualidade fantasmagórica. Segundo Rookmaaker, muitos cristãos, com frequência, acreditam que é suficiente pregar o evangelho e fazer caridade. Ao se concentrarem em salvar almas, esquecem que Deus é o Deus da vida e que a Bíblia ensina como as pessoas devem viver e como devem lidar com o mundo, a criação de Deus. O resultado é que, apesar de muitas pessoas terem se tornado cristãs, o mundo se tornou totalmente secularizado – um lugar em que a influência cristã é praticamente nula.
Do outro lado, temos um movimento de igrejas que tentam competir com o mundo, no qual o evangelho tem sido transformado em entretenimento e pastores se esforçam para serem descolados, tão bacanas quanto celebridades televisivas, desenvolvendo imitações “cristãs” de tudo o que existe na cultura popular. Algumas igrejas se orgulham justamente por copiarem o mundo ao redor. 

II. O “mundo” nas Escrituras

A confusão, em parte, ocorre pela dificuldade de entender como a Bíblia define o mundo e como devemos nos relacionar com ele. Por vezes a palavra “mundo” é empregada como o resultado final da criação do universo; às vezes, no sentido de o planeta Terra; outras vezes, como um conjunto de ideias e comportamentos que acendem a ira justa de Deus e o entristecem. 
A. Um mundo bom
“No princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Deus trouxe todas as coisas à existência por meio da sua palavra. Mas o Criador não apenas ordenou que tudo viesse a existir, ele também determinou que certas atividades fossem realizadas (Gn 1.26-28). Ainda “faltava” algo. Alguns elementos e atividades estavam por existir, e Deus resolver cumprir seu propósito por meio da ação do ser humano. Por exemplo: Adão e Eva ainda não tinham filhos e a terra não estava povoada. Deus poderia ter criado um grande número de pessoas, mas cumpriu seu propósito abençoando o primeiro casal com fecundidade e ordenando que se multiplicassem. Outras árvores (além das criadas por Deus) deveriam ser plantadas a partir daquelas cujos frutos produziam sementes, e animais deveriam ser cuidados com vista à manutenção da vida do homem (Gn 1.29-30). Deus ordenou o estabelecimento das culturas agrícola e pecuária. E “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1.31).
Havia uma infinidade de potencialidades que deveriam ser desenvolvidas pelos seres humanos. A ordem de povoar a terra não traz consigo a ideia da criação de habitações e a responsabilidade de organização social? Por isso não é nenhum exagero pensar que “as ordens de Deus também se estendem às estruturas da sociedade, ao mundo das artes, dos negócios e do comércio” (A Criação Restaurada, Albert M. Wolters, Cultura Cristã). No entanto, o pecado entrou em cena e trouxe permanentes consequências (Gn 3), mas sem, contudo, apagar a beleza de Deus impressa em tudo o que ele criou.
No livro de Jó, encontramos uma seção (cap. 38–41) que não apenas exalta a pessoa de Deus como o Criador, mas também deixa claro o prazer dele nas obras de suas mãos. Cornelius Plantinga faz um empolgante comentário sobre essa seção: “Esses capítulos repletos de teor poético não nos ensinam zoologia, mas nos transmitem uma coisa importante: eles nos ensinam que Deus ama a sua criação. Deus celebra a sua criação. Deus até brinca com a sua criação” (O crente no mundo de Deus, Cultura Cristã).
Essa perspectiva ecoa nos escritos do Novo Testamento. Quando João fala “no princípio era o Verbo”, certamente usou a expressão “no princípio” apontando para Gênesis 1.1, reafirmado, assim, que o mundo foi criado por Deus. O apóstolo Paulo fala dessa verdade (At 17; Cl 1.16,17), e o autor da Carta aos Hebreus também diz que pela fé entendemos que Deus criou todas as coisas (Hb 11.3). 
B. O mundo corrompido
A Bíblia ensina que este mesmo mundo criado por Deus está sob a maldição do pecado, que afetou toda a realidade criada. De acordo com o Evangelho de João, por exemplo, “o mundo inteiro jaz no maligno” (1Jo 5.19) e está sujeito ao dominador deste mundo, Satanás (Jo 14.30; 16.11), que é o “deus deste século” (2Co 4.4). O mundo não conhece a Deus nem aos filhos de Deus (1Co 1.21; Jo 17.25; 1Jo 3.1,13). Na verdade, odeia os filhos de Deus (Jo 15.18-19; 17.14). Então, os seguidores de Cristo devem se opor às manifestações de pecado existentes neste mundo e vencê-las pela fé (1Jo 2.15-17; 5.4).
O texto de 2Coríntios 4.4 afirma: “… o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus.” Paulo ensina, assim, que Satanás é deus deste mundo apenas no sentido de que ele está sendo servido como se fosse Deus. Satanás, o príncipe do mundo (Jo 14.30), não está no controle de todas as coisas, mas é um agente importante na produção de uma cultura marcada pela cegueira espiritual.
Eis aqui outro ponto importante. Os seres humanos que rejeitam o senhorio de Deus são agentes culturais cegados pelo próprio pecado e pela ação de Satanás, mas continuam agindo e produzindo cultura e, por mais que tenham em mente difamar o Criador, continuam a usufruir das bênçãos divinas: a vida, a inteligência, a criatividade, o ar, o sol, etc., ou seja, continuam sempre dependentes de Deus, ainda que produzindo um ambiente hostil aos filhos de Deus.
Na oração sacerdotal, Jesus intercede por todos os seus, pedindo que não sejam tirados desta realidade criada, mas libertos do mal (Jo 17.14-16). Continuamos aqui na Terra, mesmo tendo, em Cristo, uma nova natureza, porque temos uma missão: ser sal e luz. 
C. O mundo sendo redimido
O universo trazido à existência pelas mãos do Criador, mas agora manchado pelo pecado, pode ser reparado, restaurado. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.19). Cristo é a luz do mundo (Jo 1.12) e é também seu Salvador (Jo 4.14). Afinal, Deus continua soberano, a beleza de seus atos ainda pode ser vista (Sl 19; Rm 1.18-21). Cornelius Plantinga tenta exemplificar essas questões nos seguintes termos: “Do mesmo modo que um violino Stradivarius que esteja danificado, batido, mal consertado, desafinado, pode ser ainda inconfundível ao olhar e aos ouvidos bem treinados, tudo o que foi feito por Deus retém pelo menos parte da sua bondade e da sua promessa”. Jesus veio para nos mostrar que somente nele podemos ter a esperança de o mundo voltar a soar harmoniosamente.
Ainda na oração sacerdotal, Jesus (Jo 17.17-18), após pedir que os seus discípulos fossem santificados na verdade, anuncia que eles agora teriam uma missão no mundo: “Assim como o Pai enviou seu Filho ao mundo para salvar pecadores, assim Cristo enviou os apóstolos para darem continuidade a essa obra” (Bíblia de Estudo de Genebra). A igreja é o povo que deve dar continuidade ao que Cristo iniciou. A igreja deve ser um oásis no meio do deserto. 

III. Dualismo

A visão de mundo dualista é uma maneira de tentar entender a realidade à nossa volta. Parte do princípio da existência de uma tensão (conflito) de opostos em equilíbrio de forças: o bem e o mal, as trevas e a luz, o yin e o yang da cultura oriental, o corpóreo e o espiritual. O dualismo enxerga o mundo na coexistência de dois poderes, o bem disputando contra o mal. Quando esse conceito é aplicado ao cristianismo, cria-se a ideia errada de Deus lutando para tentar vencer o diabo. E assim se enxerga uma divisão entre aquilo que é santo (de Deus) e o que é profano (do diabo).
Todavia, não é isso o que a Bíblia ensina. Na verdade, Deus criou todas as coisas e, mesmo com a ação do pecado e a ação real e mortal de Satanás, o mundo permanece sob o domínio soberano de Deus. Um exemplo evidente disso está no início do livro de Jó: o diabo aflige a vida de Jó dentro dos limites estabelecidos e permitidos por Deus (Jó 1.12). Nos Evangelhos, os demônios reconhecem a autoridade de Jesus e são expulsos pelo poder de Cristo, o Filho do Homem (Mt 8.16,28-32; Mc 1.32-34). Nenhum pardal cai ao chão sem a permissão divina (Mt 10.29-30), pois não apenas a vida, mas até a constante ação da gravidade é manifestação do seu domínio perene. Portanto, o mundo não está sendo disputado em uma queda de braço.
A Igreja, no período medieval, distanciou-se da visão bíblica e abraçou a forma dualista de ver e entender o mundo. Como resultado, passou a enxergar o mundo em basicamente dois compartimentos distintos: o reino espiritual de Deus (as orações, a vida monástica, o serviço à igreja, as manifestações de devoção religiosa) em oposição ao reino deste mundo natural. Naquele período, por exemplo, o único meio de um pintor talentoso ganhar a vida era estando a serviço da igreja; as pinturas quase sempre possuíam temas religiosos, com a intenção de inspirar devoção e ensinar uma lição moral ou espiritual.
A Reforma Protestante buscou purificar a igreja e livrá-la desse erro doutrinário. Para os reformadores, o natural era tão santo quanto o espiritual, e a obra do Pai na criação era considerada tão magnífica e cheia de significado quanto a obra do Filho na redenção. A partir da Escritura, eles compreenderam que Jesus é o redentor cósmico, o único por meio de quem todas as coisas eram restauradas ao Pai (Cl 1.20).
A salvação em Cristo não tem apenas implicações para a glória futura, tem também alegrias e consequências aqui e agora, implicações para a vida presente do crente. A vida de santidade se desenvolve no relacionamento do crente com este mundo: nas tentações que são superadas, na tarefa de evangelização, na integralidade da vida do lar, na busca pela excelência profissional e estudantil, assim como na leitura da Palavra e na vida de oração. Jesus salvou (transformou) os agentes culturais e espera-se, portanto, que a cultura também seja transformada.

Conclusão

Realmente existe uma batalha ocorrendo na Terra, onde Satanás tenta confundir os crentes ou diminuir a confiança de que Cristo é suficiente para nossa salvação. Em outras palavras, é uma batalha pelos corações e pelas mentes e tem a ver com verdade versus erro, fé versus incredulidade. Deus continua no controle, sem nos dar muitos detalhes do motivo pelo qual permite a existência das armadilhas do inimigo. E embora a humanidade tenha transformado este mundo em um lugar de rebeldia, maldade e aparente desordem, Satanás não tem a menor chance de vitória final. Ela já foi conquistada por Cristo.
Um entendimento mais profundo do evangelho nos ajudará a melhor compreender o mundo à nossa volta e como devemos nos relacionar biblicamente com ele, sem desprezar a realidade do senhorio de Cristo, vislumbrando a glória porvir, mas entendendo que temos uma nobre missão.

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