O crescimento teológico e a prática da igreja
Texto básico: Atos 11.1-18
Introdução
Ao longo do capítulo 10 de Atos vemos, por meio da experiência de Pedro e a conversão dos gentios, como a missão deve renovar-se pelo árduo trabalho de interpretação da Palavra de Deus. O grande desafio missionário que temos diante de nós será encontrado à medida que nos debruçarmos seriamente no texto bíblico, cientes de que a primeira tarefa missionária da igreja é, sem dúvida alguma, sua vocação hermenêutica. Assim, pelo constante estudo da Palavra poderemos renovar nossos conceitos e prática de missão.
Atos 10, portanto, deve ser visto como um capítulo muito importante para a vida da igreja cristã. Trata-se do primeiro passo dado pela igreja em direção a todo o mundo, descrevendo o necessário rompimento com a velha e preconceituosa fronteira judaica que estava inserida na conceituação e prática teológica e missiológica da igreja. Foi o início de uma etapa nova nos conceitos e práticas missionárias com base na interpretação da Palavra de Deus.
Novos conceitos e práticas
Era difícil para os judeus que observavam a lei com rigor, e que não haviam tido a mesma visão de Pedro, perceberem que Deus não mostra favoritismo em sua oferta graciosa de salvação (veja Confissão de Fé de Westminster 28.5).
Ao começar a leitura do capítulo 11 nos deparamos com outra extensão muito significativa da história da conversão dos gentios: o seu recebimento na igreja. Da mesma forma como houve certa crise para a igreja compreender que o evangelho havia sido destinado a todo o mundo e não a um povo específico somente, vemos agora a existência de outra crise para que toda a igreja compreendesse que a ação redentora de Deus estava direcionada ao mundo todo e não limitada pelos conceitos e visão judaicos (teologia) da própria igreja.
A notícia da conversão dos gentios já havia chegado aos apóstolos e irmãos que se reuniam por toda a Judeia quando Pedro se encontrou com a liderança da igreja em Jerusalém. Diante da expectativa de que os apóstolos ratificassem a conversão dos gentios como fizeram com os samaritanos (At 8.14-17) e esses pudessem ser devidamente recebidos na igreja, Pedro se dirige voluntariamente a Jerusalém com a finalidade de prestar os esclarecimentos necessários sobre a conversão dos gentios.
Não restam dúvidas de que a conversão dos gentios havia perturbado os cristãos da Judeia que eram todos, ainda naquele momento, judeus de nascimento e de formação religiosa (“partido dos circuncisos”). Isso explica a razão de criticarem Pedro por haver entrado na casa de “homens incircuncisos” e comer com eles. Tal atitude era indesculpável para os judeus, mesmo já sendo convertidos a Jesus Cristo. Na verdade, como Pedro no início do capítulo 10, eles ainda se mantinham claramente presos e influenciados pelas práticas e tradições do judaísmo e, certamente, temerosos pelo que poderia lhes ocorrer na Judeia pelo possível convívio direto com gentios.
Comer com não-judeus era uma clara violação da lei cerimonial, porque os gentios não seguiam as leis dietéticas do Antigo Testamento (Lv 11), nem as purificações cerimoniais (Mc 7.5).
“Pedro, então, começou a explicar-lhes exatamente como tudo havia acontecido” (11.4). Ao comparar as explicações dadas por Pedro com o relato do capítulo 10, observamos que Pedro não começa a história com a visão de Cornélio e, sim, com sua própria visão e com sua transformação conceitual (teológica e missiológica) ocorrida a partir da interpretação da Palavra dada por Deus. O processo de interpretação dos fatos à luz da Palavra de Deus foi o elemento que causou a transformação dos conceitos teológicos de Pedro, afetando diretamente sua prática missionária. Foi, igualmente, a interpretação da Palavra de Deus que transformou o modo como os irmãos e apóstolos em Jerusalém passaram a ver a conversão dos gentios.
A exposição feita por Pedro teve o objetivo de interpretar a Palavra recebida de Deus destacando sua ação redentora em favor também dos gentios. Dessa forma, ele mostrou como o seu próprio preconceito religioso e racial judaico teve de cair por terra. Igualmente, procurava mostrar que esse mesmo preconceito por parte dos irmãos deveria ceder lugar diante da Palavra revelada por Deus. Fez isso ao contextualizar corretamente a Palavra de Deus, afirmando que uma vez que “o Espírito Santo desceu sobre eles como sobre nós no princípio” (11.15 – referência ao Pentecostes) e lembrando-se “do que o Senhor tinha dito: João batizou com água, mas vocês serão batizados com o Espírito Santo” (11.16), seria impossível proibir os gentios de se converterem, serem batizados e recebidos na igreja, pois “quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (11.17).
Ao interpretar a Palavra e a ação histórica e redentora de Deus em favor do mundo (gentios), Pedro auxiliou os irmãos da Judeia a compreenderem a vontade revelada por Deus, da mesma forma como ele mesmo teve sua fé confrontada e fora convencido por essa Palavra. Para Pedro e, agora, para os demais irmãos da Judeia, aceitar que os gentios se tornaram seus irmãos em Cristo é, de fato, um crescimento conceitual e teológico considerável e ousado, mas negá-lo seria optar pela obstrução da Palavra e da ação missionária de Deus.
A reação e a nova postura da igreja de Jerusalém são as que se deveriam esperar dela: “… ouvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus” (11.18). Os irmãos da Judeia já não tinham mais o que dizer contra a atitude de Pedro de entrar na casa de um gentio e comer com ele, já não podiam mais criticá-lo por haver pregado aos gentios e batizado os convertidos. Agora apenas podiam compreender a Palavra de Deus, dada inicialmente a Pedro, e reconhecer sua ação soberana e missionária em favor do mundo todo e não somente direcionada aos judeus. Não tinham mais condições de criticar nem de procurar impor sua própria interpretação bíblica restrita e condicionada pelas tradições judaicas que os caracterizava até então. Manter a antiga posição seria servir de empecilho para a vontade claramente revelada por Deus por meio de sua Palavra. Somente lhes restava louvar e glorificar a Deus!
Sabemos que uma transformação conceitual e teológica como essa é um dos grandes desafios que a igreja em todas as épocas e em todas as regiões do mundo precisa, permanentemente, enfrentar. No caso dos irmãos judeus do primeiro século, embora tenham reconhecido a ação e a Palavra de Deus na conversão e batismo de Cornélio e sua família, não sabemos com certeza se eles passaram a se dedicar intensamente à missão entre os gentios. A transformação teológica do verso 18 – “então, Deus concedeu arrependimento para a vida até mesmo aos gentios!” – precisaria ainda ser desmembrada em diversos significados que afetassem de forma consistente todas as outras dimensões de seu credo teológico e, consequentemente, gerasse uma nova prática missionária, pastoral e teológica.
É interessante notar, quanto a isso, que na sequência do capítulo 11, vemos que o surgimento da igreja em Antioquia não parece ser uma consequência teologicamente natural e esperada da nova fé assumida pela igreja; antes, parece que Deus utilizou-se da perseguição, do sofrimento e da dispersão para dar sequência à sua ação redentora em direção ao mundo. Eles somente se deram conta de sua responsabilidade para com todo o mundo quando, novamente, receberam notícias da conversão de gentios e, somente então, enviaram a Barnabé (11.22).
Conclusão
Diante do que temos visto neste texto, é importante buscar significados pertinentes para os nossos dias. Gostaria de sugerir alguns:
1. É fundamental que a igreja dos nossos dias no Brasil não se distraia com a insistência com que nos é apresentado o “pragmatismo metodológico” no trabalho missionário. Cada vez mais os métodos de evangelização e de crescimento de igreja nos são trazidos como sendo a chave do sucesso para a obra missionária. Frequentemente, pelo peso dos investimentos feitos e pela insistência com que são apresentados, nos vemos sem opção para o trabalho missionário por estarmos já convencidos que os grandes investimentos (principalmente de origem internacional!) são a melhor (ou única) forma de realizar a obra. É preciso não ter medo de abrir a Palavra de Deus e deixar que ele nos confronte e nos convença. Somente por meio de uma legítima interpretação bíblica e consequente transformação teológica e missiológica é que venceremos o peso que o atual “metodologismo de sucesso” imprime sobre a obra missionária da igreja.
2. Da mesma forma, é muito importante que a igreja hoje não se iluda com sua suposta segurança teológica, crendo ser a detentora do mais sólido e invariável saber teológico. Frequentemente nos vemos condicionados por uma perspectiva teológica que não considera a missiologia como legítima e que, efetivamente, não desemboca na missão; antes, uma teologia que se considera como já completamente realizada, autossuficiente e divinizada. Até parece que nos tornamos como os irmãos da Judeia que, por se considerarem teologicamente completos e infalíveis, não lhes restava nada mais que criticar duramente a heresia cometida por Pedro. É preciso resgatar uma interpretação bíblica que esteja aberta à ação-missão de Deus no mundo revelada em sua Palavra e desenvolver uma atitude de permanente arrependimento conceitual e ampliação da nossa compreensão bíblica da missio Dei.
3. A dimensão conceitual do crescimento da igreja, ou seja, nosso constante crescimento como comunidade de fé que lê e interpreta a Bíblia, transformando-se e assumindo as novas perspectivas de missão e de pastoral para o mundo em que vivemos, é uma dimensão do crescimento que nem sempre recebe o devido valor e investimento. Ou estamos investindo de forma prioritária e alucinante no crescimento numérico da igreja para sermos uma igreja de sucesso, ou ainda estamos pensando que o crescimento na qualidade é o único que interessa. Mas ao nos voltarmos para a Palavra de Deus, notamos que há outras dimensões que também devem ser descobertas e colocadas em total integração e equilíbrio com as demais. Esse crescimento teológico e missiológico que nos leva a dar razão da nossa fé e, como consequência inevitável, a propagá-la, é uma dessas dimensões que precisam ressurgir entre todos nós. Afinal, somos uma comunidade de intérpretes e viventes da Palavra!
Esperamos que a transformação produzida por uma constante tarefa de interpretação da Palavra de Deus nos faça compreender os caminhos que temos andado, nos leve ao genuíno arrependimento e nos permita ver a amplitude e a profundidade da missão cumprida por Deus, com a qual ele nos responsabiliza.
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