Deus permite?
Texto básico: Atos 4.23-28
Introdução
Como explicar as ações malignas no mundo? Esta lição, e as próximas, tratarão de uma questão mais complexa: o relacionamento entre Deus, os homens e o mal. Vamos buscar respostas nas Escrituras, sabedores de que aquilo que foi revelado nos pertence, e aquilo que não foi revelado pertence somente ao Senhor (Dt 29.29).
I. Modelos equivocados
A discussão sobre o relacionamento entre Deus e o mal é antiga. Ao longo da História essa discussão foi ganhando corpo e chegou até nós de maneira que podemos colocá-la em “cercas” maiores, sob “guarda-chuvas” mais amplos de posicionamentos. Obviamente os modelos que abordaremos, a seguir, não esgotam a totalidade nem a particularidade de cada um, mas ajudam a categorizar e identificar padrões de pensamento.
A. O mal como privação
Aqueles de tradição arminiana nor¬malmente se alinham a essa ideia. Eles entendem que, pelo fato de Deus ser bom e ter criado tudo de maneira boa e perfeita, a corrupção e a degradação das coisas criadas foram produzidas pelo pecado, que pertence somente às criatu¬ras de Deus, como homens e anjos, por exemplo, e que esses últimos agiram de modo totalmente livre. Quem pensa assim certamente tenta preservar os textos das Escrituras que en-sinam que o pecado é gerado no coração do homem e Deus é a fonte de todo bem (Tg 1.12-18). Assim, dizem eles, tudo o que é bom procede de Deus e tudo que é mal não procede dele. Essa visão, embora pareça ser boa, pois tenta preservar Deus de ser considerado mau, falha por não reconhecer a sua soberania e o seu plano eterno. Se Deus realmente fosse somente o agente iniciador e sustentador de coisas boas em sua criação, como ele teria controle sobre as más? Será que ele poderia fazer uma promessa e garantir que ela fosse cumprida? O diabo seria um concorrente de sua vontade? Haveria uma guerra cósmica entre o bem (Deus) e o mal (Satanás)? Não é isso que a Bíblia ensina. A morte de Cristo Jesus na cruz foi o evento mais cruel, injusto e desumano realizado na história do mundo, e ele foi claramente prometido por Deus e cumprido nos seus mínimos detalhes (Is 53.1-12; Lc 22.3-6; Mt 26.20-25,53-54,74-75; 27.9-10; Mc 15.27-28).
B. Permissão divina
Sendo uma derivação do modelo anterior, a ideia de permissão divina tenta explicar, de maneira um pouco mais profunda o relacionamento de Deus com o pecado do que a ideia do mal como privação. Diz Paul Helm: “Mesmo que a privação [do mal] não faça sentido, ela ainda admite o caráter impecável de Deus, em virtude do qual ele não poderia realizar uma ação má; ele não poderia (na frase que se tornou comum) “ser o autor do pecado”. Então como o pecado acontece, se a providência de Deus está no controle de todas as coi¬sas, e ele não pode produzir o pecado? A resposta para isso é a permissão de Deus. Deus permite o pecado” (A Providência de Deus, Editora Cultura Cristã). Podemos entender a permissão divina de duas maneiras: geral e específica. A permissão geral é como se Deus fosse o presidente de uma empresa. Ele sabe tudo o que acontece, direciona os acontecimen¬tos, envolve os funcionários para que sua vontade seja realizada, mas ele não está efetivamente controlando ninguém. Essa visão falha por querer manter a liberdade dos agentes em detrimento da determina¬ção de Deus. A questão é que ela, logica¬mente, também não encaixa e não faz jus ao que ensina a Palavra de Deus. A permissão também pode ser vista de maneira específica, isto é, em uma situa-ção de pecado ou mal, Deus simplesmente permite que ela aconteça porque ele não age para impedi-la. Sendo Todo-Poderoso, Deus poderia evitar que determinado mal fosse praticado, mas não o faz porque tem propósitos (fins) sábios e santos. Talvez alguém pergunte: Permitir o mal não seria tão mal quanto praticá-lo? Se Deus pode evitar que algo aconteça, mas não o faz, sua bondade não estaria comprome¬tida, mesmo que seus fins sejam santos e justos? É por isso, que precisamos de um modelo fundamentado nas Escrituras.
II. Compatibilismo
Na lição anterior aprendemos que o relacionamento entre Deus e o homem se dá de uma maneira a que denominamos de “concursus”. O compatibilismo seria uma aplicação do “concursus”, principalmente no que diz respeito ao relacionamento de Deus com o pecado e com o mal. O compatibilismo procura manter as verdades da soberania de Deus e da responsabilidade e liberdade do homem juntas, sem prejudicar qualquer um dos pontos. Deus é ampla e exaustivamente soberano, ele dirige e dispõe de tudo e de todos para realizar os seus planos. Quanto aos agentes morais, que são livres e responsáveis, eles realizam o plano eterno de maneira que a culpa pelos seus erros seja só deles porque eles desejaram praticar o mal. As pessoas que não concordam com essa visão dizem que, desse modo, o homem seria somente uma marionete, um robô nas mãos de Deus. Na verdade, essa é mais uma daquelas argumentações sem sentido – já expusemos algumas nas lições anteriores. O fato é que os adversários do compatibilismo precisam levantar espan-talhos para a não aceitação das verdades das Escrituras. Então, vamos relembrar novamente o que a Palavra ensina.
A. A participação de Deus no mal
Na próxima lição abordaremos de maneira específica o “problema do mal”. Por enquanto, vamos relembrar o ensino bíblico de que Deus tem participação na maldade dos homens, embora essa participação seja diferente com relação à bondade que eles praticam. Nós assumimos que Deus está por detrás tanto do bem como do mal, mas de uma maneira que o mal é realizado pelos agentes livres – que desejam realizar o mal –, e o Senhor utiliza a instrumentalidade desses agentes secundários para a realização do seu propósito soberano. Alguns textos das Escrituras são muito claros a esse respeito: “Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?” (Am 3.6b); “Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o bem?” (Lm 3.38); “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” (Is 45.7; cf. Sl 105.25; Rm 9.18; Pv 21.1; 2Ts 2.11).
B. A ação do homem no mal
Não é porque Deus determina e utiliza o homem para realizar o seu plano que o homem fica isento dos seus erros. Na realidade, todos os homens agem de forma livre e são responsáveis pelos seus atos, sem compulsão ou coerção; eles realizam o que desejam. Dois exemplos podem ser analisados aqui. O primeiro se refere ao censo realizado pelo rei Davi. O texto começa dizendo, claramente, o que aconteceu: “Tornou a ira do Senhor a acender-se contra os israelitas, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, levanta o censo de Israel e de Judá” (2Sm 24.1). Por enquanto, diremos que Deus fez isso por meio de Satanás (1Cr 21.1), na próxima lição retomaremos esse assunto.
Embora Deus, soberanamente, de forma direta ou indireta, tenha “incitado” o rei Davi a levantar o censo; o autor da ação foi somente de Davi. Joabe, comandante do exército, ainda tentou demover o rei dessa ideia (2Sm 24.3-4; 1Cr 21.3), pois o censo demonstraria o poder bélico de Davi, tornaria orgulhoso o seu coração e faria com que tanto o povo como o rei confiassem mais nesse último do que no poder do Senhor (1Sm 14.6; Is 31.1). Depois de nove meses o rei recebeu o relatório (2Sm 24.8). Diz a passagem que “Sentiu Davi bater-lhe o coração, depois de haver recenseado o povo, e disse ao Senhor: Muito pequei no que fiz; porém, agora, ó Senhor, peço-te que perdoes a iniquidade do teu servo; porque procedi mui loucamente” (2Sm 24.10). A soberania de Deus estava agindo de forma ativa, mas Davi foi culpado pelo seu pecado; ele reconheceu seu erro e arrependeu-se. Outro texto é Atos 4.23-28. Depois de ouvir o relato dos apóstolos sobre a proibição de pregar o evangelho, a igreja reunida orou adorando ao Senhor e pedindo a ele que lhes concedesse mais intrepidez para pregar a palavra (At 4.29). Mas o que eles afirmam é que os homens maus se ajuntaram contra Jesus. Dentre esses homens, estava Herodes, Pôncio Pilatos, gentios e gente de Israel. Como diz Heber Carlos de Campos:
“Alguns detalhes da traição de Cristo foram até planejados cuidadosamente, como é o caso da ação dos fariseus e membros do Sinédrio. Nenhum deles fez coisa alguma contrária à sua natureza. Eles fizeram tudo o que estava de acordo com as disposições dominantes da alma deles. O prazer deles foi cuspir em Jesus, dar-lhe bofetadas, zombar dele, prendê-lo, açoitá-lo, sentenciá-lo à morte e, por fim, serem instrumentos malignos da sua execução na cruz […] Todas essas coisas foram feitas voluntariamente, sem serem forçados por nada de fora a fazerem o que fizeram. Simplesmente, eles deram ouvidos à sua própria natureza” (A Providência, Editora Cultura Cristã).
Aqueles homens se ajuntaram “… para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (At 4.28). Deus providencialmente não apenas planejou esses acontecimentos, como conduziu esses homens para fazerem tudo isso. Ainda assim, eles são completamente culpados por seu pecado, sua incredulidade e sua maldade.
III. Todas as ações de todos os homens e anjos
Provavelmente, você já compreendeu que a permissão a que nos referimos não é aquela que simplesmente “deixa as cosias acontecerem”, como se Deus não estivesse envolvido no processo. Por isso, a Confissão de Fé de Westminster ensina: “A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam em sua providência, que esta se estende até a primeira Queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula, e governa em uma múltipla dispensação, mas essa permissão é tal, que a pecaminosidade dessas transgressões procede tão somente da criatura e não de Deus, que, sendo santíssimo e justíssimo, não pode ser o autor do pecado nem pode aprová-lo” (V.IV). Para fins didáticos, dividimos o compatibilismo da seguinte maneira: atos bons dos homens bons, atos bons dos homens maus, atos maus dos homens bons e atos maus dos homens maus. Observe o quadro a seguir:
Atos bons dos homens bons: Fp 2.13; Jo 8.32,34,36; Gl 5.13; 1Pe 2.16; 2Co 7.1
Atos bons dos homens maus: Is 44.24-26;45.1-7; 2Tm 1.16-18
Atos maus dos homens bons: Gn 37.11,18-19; 45.5-8; 50.15-21
Atos maus dos homens maus: Jr 25.9-14; 51.20-24; 52.4-30;Hc 1.3-13
Por homens bons queremos dizer aqueles que são regenerados e habitados pelo Espírito; por homens maus são aqueles que estão distantes de Deus e vivem deliberadamente pecando, tendo um coração escravo dos seus prazeres. Por atos bons daqueles que são regenerados deve-se entender a obediência à Palavra, o produzir e praticar o fruto do Espírito. Nos homens maus, os atos bons têm outro sentido: embora suas intenções nunca sejam puras, eles produziram alguma consequência boa cujos efeitos foram benéficos. Os atos maus, dos homens maus, referem-se somente ao processo natural da sua natureza caída (cf. A Providência, Editora Cultura Cristã).
É necessário, portanto, cultivar a humildade e reconhecer que mesmo que os ensinos das Escrituras sejam muitos e claros, essa doutrina é bastante complexa, e de certo modo, misteriosa. Há pessoas que não creem dessa maneira e temem apontar Deus como o “autor do pecado” ou “compactuando com o mal”. A Confissão sabiamente enfatiza a responsabilidade moral do homem, que vive por aquilo que está revelado, ou seja, embora Deus tenha todo esse envolvimento nas ações e intenções dos homens, nós devemos viver pelo que Deus, que é bom e justo, diz, e temer sua disciplina e justa condenação, pois ele odeia o pecado (1Jo 2.15-16; Pv 6.16-19; Hb 1.9).
Conclusão
O relacionamento de Deus com o mal e com os homens é complexo. Todavia, as Escrituras nos oferecem respaldo para pensar sobre esse tema de modo que enxerguemos o compatibilismo nas ações soberanas de Deus e na responsabilidade de cada homem. Ninguém está alheio ao poder providencial de Deus, e ele será cada vez mais glorificado por meio da verdade registrada em sua Palavra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário