O desafio da vida urbana
Texto básico: Lucas 10.1-12, 25-37
Introdução
É preciso coragem para se analisar objetiva e criticamente a atuação eclesiástica, especialmente nos centros urbanos, os quais estão em rápida e constante mudança, quer em virtude do êxodo rural, quer pela velocidade com a qual a dinâmica da vida contemporânea caminha. Essas mudanças assustam muitas pessoas, especialmente as mais conservadoras, que tendem a ver o que é diferente sempre como uma ameaça, sendo tentadas, portanto, a fecharem-se dentro dos seus próprios guetos, onde supostamente estariam mais seguras. Não estariam, com tal prática, fugindo da vocação missionária essencial à igreja cristã? Como, então, poderiam e deveriam desenvolver um ministério de missões urbanas efetivo e fiel a Deus neste mundo tão complexo, em constante mudança e em crescente apostasia religiosa? Nesta lição, vamos analisar a missão dos setenta discípulos enviados por Cristo às cidades e a parábola do bom samaritano que ele contou a um religioso cético, que o estava provando. Através dessa dupla análise, vamos buscar princípios que nos ajudem a enfrentar essa vocação evangelística.
I. A missão dos setenta
A primeira parte deste estudo é baseada na passagem (Lc 10.1-12) conhecida como a missão dos setenta, a qual serve de base para a nossa reflexão sobre os desafios próprios à missão urbana. Acompanhemos a descrição do texto e a análise dos seus ensinamentos, destacando os aspectos mais relevantes.
a. Entendendo a missão dos setenta
O Senhor Jesus enviou setenta discípulos, em duplas, para irem à sua frente às cidades por onde ele haveria de passar. Ele os advertiu sobre a grande dimensão da seara, pela qual deveriam orar a Deus rogando o envio de mais trabalhadores, e sobre a situação de risco deles, que seriam como cordeiros lançados aos lobos (vs.1-3). A seguir, ele passou a lhes dar algumas orientações funcionais, que incluíam levar poucos pertences pessoais que não lhes prejudicasse na missão, saudar os outros com votos de paz, e a humilde e grata aceitação da acolhida que lhes fosse oferecida (vs.4-8). Por fim, Cristo dá as orientações finais ao grupo que, como precursores do Messias, receberam dele autoridade para operar alguns sinais e também para alertar sobre a condenação certa àqueles que rejeitassem tal oferta da graça de Deus (vs.9-12).
Essa descrição resume o teor das palavras de Cristo àqueles setenta discípulos missionários, que exerceram uma espécie de ministério ampliado do colégio apostólico, dadas as semelhanças vocacionais, funcionais e autoritativas. Levando em consideração tanto as semelhanças, quanto as diferenças entre o ministério deles e o que nós hoje, como igreja contemporânea, deveríamos desenvolver, analisemos princípios importantes para o ministério evangelístico urbano que o texto nos apresenta, visto que eles foram enviados para exercer exatamente esse tipo de atividade.
b. Aspectos do ministério urbano na missão dos setenta
Há três aspectos que podem ser observados da missão dos setenta que nos apresentam princípios importantes para o desenvolvimento de missões urbanas. Vejamos:
- A vocacionalidade – Assim como aqueles setenta discípulos missionários que foram enviados às cidades como precursores de Cristo, aqueles que desejam desenvolver um ministério urbano eficiente também devem se enxergar como pessoas que vão à frente de Cristo. Isso é necessário para que, através do seu testemunho, prepare os corações daqueles que haverão de reconhecer o Senhor como o seu Redentor pessoal. Por essa razão, importa também que tenham a visão da cidade, não simplesmente como uma “terra de ninguém”, um amontoado de pessoas ou um campo de conflito de interesses pessoais, mas que a vejam, além das estatísticas sociais e criminais, como um campo fértil a ser trabalhado, com muitas pessoas a serem alcançadas. Essa visão revela a verdadeira vocação dos trabalhadores da seara urbana, os quais são poucos. Por isso devemos também orar ao Senhor, rogando que envie pessoas com essa visão, que abracem essa vocação de levar Cristo aos outros, indo ao encontro das pessoas e anunciando-lhes o evangelho (2Ts 3.1). Se é verdade que não devemos nos isolar dos perdidos, é necessário que saibamos que o trabalho de evangelização gera uma tensão e traz consigo perigos reais de oposição (Ef 6.12,19,20). Não precisamos, de fato, orar por isso, como Cristo exortou àqueles setenta discípulos?
- A funcionalidade – A vida urbana é normalmente bastante corrida. As pessoas nem sempre têm tempo ou disposição para parar e ouvir o que estranhos têm a lhes dizer. Sendo assim, o trabalho evangelístico urbano deve ser objetivo. A equipe envolvida não deve desperdiçar a atenção que conseguir das pessoas, mas deve bem aproveitá-la para lhes anunciar o evangelho propriamente dito (Ef 4.5,6). Também é esperado que sejamos respeitosos e sinceros na evangelização, demonstrando o nosso desejo de que os ouvintes recebam o evangelho que transmitimos, pois só assim eles serão beneficiados com as suas graças decorrentes (At 19.4,8; Ef 6.24). Por fim, devemos ter empatia com os nossos ouvintes, recebendo a acolhida que eles nos oferecerem, pois a rejeição da demonstração de hospitalidade normalmente é tida como ofensa, arrogância pessoal e desprezo pelos outros; basta que se observe a prudência. Há muitas pessoas que prejudicam esse contato com outras por rejeitarem o que lhes é oferecido; e há até obreiros que recusam comer certos alimentos na casa dos seus anfitriões, o que acaba deixando uma má impressão.
- A autoridade – Ainda que nós não façamos parte daquele grupo precursor do Messias, o qual contou com parte da sua capacitação sobrenatural como evidente sinal de que eles estavam abrindo caminho para Cristo, em um sentido relativo, também temos essa autoridade. Não devemos, portanto, banalizar o alto teor da mensagem que pregamos (Cl 1.27-29), entregando-a levianamente (1Co 4.1,2; 2Co 4.1), ou mesmo diminuindo as suas exigências e aumentando os seus benefícios, no afã de ver pessoas aceitando o evangelho (Hb 2.1). Sendo assim, também temos a autoridade para advertir as pessoas sobre o risco que elas correm caso continuem a rejeitar a mensagem do evangelho. Aqui, portanto, trata-se da necessária autoridade do mensageiro fiel, o qual anuncia o evangelho como um verdadeiro representante do próprio Cristo, tanto para a salvação dos que crerem, o que deve ser o nosso desejo e empenho, quanto para a perdição dos que rejeitam a mensagem da redenção (At 13.44-49).
Da missão daqueles setenta discípulos, destacamos alguns princípios para o trabalho evangelístico urbano contemporâneo – até mesmo diante das semelhanças que há entre ambas as missões, ainda que não desconsideremos as suas diferenças – os quais ressaltam que a igreja da cidade deve abraçar a sua vocação evangelística e, para isso, precisa ter uma visão apropriada do serviço. Destacamos também a conveniência de se realizar o trabalho estrategicamente funcional e objetivo, estabelecendo laços de confiança e empatia com as pessoas a serem alcançadas. Finalmente, a tarefa evangelística urbana deve ser exercida com seriedade, através de posturas, atitudes e conteúdo que comuniquem tanto a gravidade, quanto a sublimidade daquilo que está sendo feito, o que não é entretenimento evangélico, mas trata de realidades eternas.
II. O bom samaritano
A segunda parte deste estudo é baseada na conhecida parábola do bom samaritano, registrada em Lucas 10.25-37, da qual podemos extrair alguns princípios essenciais para as estratégias de evangelização urbana a partir da análise que faremos dela.
a. Entendendo o contexto da parábola do bom samaritano
Em seguida às orientações dadas por Cristo aos seus setenta discípulos, Lucas registra que o Senhor advertiu os moradores de Corazim, Betsaida e Cafarnaum por terem-no rejeitado, o que pressupõe um certo período de tempo. A seguir, o nosso Senhor ouviu o relato dos discípulos missionários que regressavam eufóricos da missão, ávidos por narrar os feitos gloriosos da missão, pelo que Cristo os advertiu, ao afirmar que a maior alegria deles deveria ser por estarem entre os salvos. Logo depois, o Filho de Deus deu graças ao Pai porque ocultou aquelas coisas dos sábios e instruídos, mas revelou aos pequeninos. Isso significa que o conhecimento pessoal e redentor dele através de Cristo se dá por soberana manifestação da sua graça (vs.13-24).
Em seguida, Lucas registra que um certo intérprete da lei, querendo provar o Senhor Jesus, lhe pergunta sobre como herdar a vida eterna (v. 25). Jesus devolve a pergunta inquirindo sobre o que está escrito na lei e como ele a interpretava (v. 26). O intérprete corretamente respondeu resumindo a lei nos dois pontos básicos clássicos de amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo. Cristo reconheceu a boa resposta e o exortou a praticá-la (vs.27,28); contudo, procurando se esquivar, o homem perguntou a Jesus quem seria o seu próximo (v.29). O nosso Senhor respondeu através desta conhecida parábola do bom samaritano.
b. A parábola do bom samaritano e as missões urbanas
Destacamos três aspectos que se relacionam diretamente com a prática da evangelização urbana. Vejamos:
- O interesse distorcido de alguns – Na evangelização urbana, é preciso termos em mente que as pessoas que nos indagam sobre a Palavra podem ter interesses distorcidos. Isso pode variar desde uma visão utilitária da fé, que leva pessoas a buscarem a religião apenas quando precisam de algum auxílio, mas sem um genuíno interesse em se tornar um discípulo de Cristo, até razões meramente sociais, como certos políticos que procuram fazer média com os religiosos, especialmente em épocas de campanha eleitoral. Nessa parábola, o intérprete da lei é uma ilustração disso, pois não se aproximou de Jesus com uma pergunta sincera; só queria provar a Cristo, o qual sabiamente inverteu a situação e lhe mostrou que ele é quem estaria reprovado segundo os critérios da lei. Desse incidente, aprendemos que devemos evitar os falatórios inúteis. Para isso, precisamos observar se há sinceridade nos questionamentos das pessoas (1Tm 1.4; 6.20,21) e confrontá-las quanto às suas reais motivações religiosas (Jo 6.26,27). É preciso também exortá-las à prática do que têm ouvido (Tg 1.22), como Cristo fez com aquele homem, cujo debate teológico não vinha acompanhado do empenho pessoal.
- A religiosidade indiferente à humanidade – No coração da parábola do bom samaritano está a lição de que o amor ao próximo é cumprido por meio de atos que demonstrem amor, os quais rompem barreiras e preconceitos e aproximam as pessoas umas das outras. Com essa parábola, o Senhor está denunciando a hipocrisia religiosa daquele intérprete da lei. Não foi sem razão que Cristo citou dois personagens de notória importância religiosa nos seus dias – o sacerdote e o levita (vs.31,32) – como ilustrações de pessoas que equivocadamente poderiam imaginar que as suas responsabilidades religiosas seriam suficientes expressões de uma fé saudável, mas não eram. A verdadeira religião não consiste essencialmente no cumprimento de funções religiosas, como se fossem sempre legítimas expressões de pura devoção a Deus; é preciso lembrar que os exercícios litúrgicos podem mascarar um auto-engano (Is 1.15-17). O verdadeiro amor a Deus deve vir acompanhado do amor ao próximo (1Jo 4.20), demonstrado por atos concretos (1Jo 3.17,18).
- A sensibilidade com os excluídos – O impacto da parábola foi ainda maior porque a sua personagem virtuosa era exatamente um samaritano, povo com quem os judeus tinham uma severa rixa (Jo 4.9). Dessa maneira, Jesus nos ensinou que não devemos nos manter afastados das pessoas por preconceitos humanos ou religiosos, ainda que muitos não entendam esta vocação redentora do Cristianismo e permaneçam na visão religiosa do mérito (Lc 7.39,47). Sempre haverá quem critique quaisquer posturas que extrapolem os hábitos convencionais da sua tradição religiosa (Mt 11.16-19), ainda que estas estejam distantes do preceito bíblico.
A partir dessa análise, destacamos alguns princípios para o trabalho evangelístico urbano contemporâneo: é necessário um estado de alerta e cuidado para com as pessoas que questionam a religião cristã com uma motivação diferente do sincero e legítimo interesse ou dúvidas; é necessário que atos concretos expressem misericórdia e amor genuínos para com o próximo, o que manifesta o verdadeiro amor a Deus; por fim, para realizarmos um trabalho evangelístico urbano eficiente e bíblico, devemos permanecer sensíveis e atentos àqueles que comumente têm sido marginalizados pela sociedade e pela religião. Devemos olhar para essas pessoas motivados a alcançá-los com o evangelho que acolhe, perdoa, santifica e capacita pecadores, antes marginalizados ou opositores ao evangelho, a serem santos instrumentos para a glória de Deus (Gl 1.23; 2Co 4.7), em decorrência desse encontro redentor com Cristo através do ministério evangelístico (1Pe 2.9,10).
Conclusão
Ao refletirmos sobre a responsabilidade missionária nos centros urbanos a partir da missão dos setenta e da parábola do bom samaritano, concluímos que devemos enxergar que a nossa vocação é a de anunciar o evangelho aos perdidos com autoridade, sensíveis à realidade das pessoas, associando atos concretos de auxílio ao próximo à pregação intrépida do evangelho. Devemos evitar as visões equivocadas que só enxergam no mundo urbano as ameaças da “grande meretriz babilônica”, o que nos empurraria a uma religiosidade que é uma fuga interna dirigida aos exercícios litúrgicos e doutrinários divorciados do envolvimento com a realidade ao nosso redor. Devemos ir em busca de pecadores para a glória de Deus, ainda que conscientes de que haverá muita rejeição, pois as missões urbanas devem ser realizadas tendo em vista que as cidades, além das ameaças, oferecem oportunidades para a igreja atuar.
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