Pregar o Evangelho não é meio de vida
Por Sérgio Lyra
Alguns meses atrás, assisti uma reportagem do gênero “trágico-cômico”. Um repórter em São Paulo decidiu abrir uma igreja. Dirigiu-se à praça da Sé e, admirado com a facilidade de um homem que lá pregava, decidiu contratá-lo como “pastoral-trainner”. Pasmem! O pregador aceitou a proposta e lhe orientou como se vestir, o que deveria saber da Bíblia, como usar a voz e até o levou para um pastor que o orientou nos “detalhes comerciais”, inclusive na escolha do nome da igreja. A conversa foi sórdida e diabólica, pois o repórter disse que queria uma igreja com o nome: “Gaviões fiéis do Senhor” e o suposto pastor respondeu: “Não dá. Esse nome é ruim. Com ele você não vai atrair para a sua igreja torcedores de outros times…”.
Estou consciente que o propósito da reportagem era expor ao ridículo o evangelicalismo que hoje se espalha pelo Brasil, fazendo mercado da fé. Este tipo de mercantilismo é muito fácil de ser identificado, porém, de igual forma, tenho visto outro tipo de “negócio da fé” ganhar espaço dentro da igreja, atingindo membros, líderes, obreiros e também pastores. Para soar de forma aceitável, mui frequentemente a prática recebe o nome agradável de “bênção”. Sim, eu estou falando de dinheiro como fator de decisão, como objetivo de vida que se disfarça de múltiplas maneiras, tentando enganar qualquer crente que se deixe atrair pela busca do ter. Com propósito de trazer uma reflexão sobre o assunto à luz da palavra de Deus, abordo alguns aspectos como ponto de partida para reflexões mais detalhas e pessoais.
1. A pregação do evangelho não é uma simples questão de informar outra pessoa
Antes de mergulhar na questão propriamente dita do dinheiro, julgo mais importante expor que a tarefa missionária de anunciar a Cristo não é a simples transmissão de conhecimento de uma pessoa para outra. O evangelho (literalmente: boas notícias que merecem divulgação) não é apenas divulgar o que está escrito sobre Jesus. O evangelho é o próprio Jesus, Emanuel, Deus conosco. O apóstolo João registrou nove afirmações de Jesus acerca de sua ação salvadora, precedida da expressão: “Eu sou” (O Messias – 4.26; O Pão da vida – 6.35; A Luz do mundo – 8.12; Deus – 8.24,58; A porta – 10.7; O bom Pastor – Jo 10.11; A ressurreição e a vida – 11.25; O caminho, a verdade e a vida – Jo 14.6; A videira verdadeira – Jo 15.1). Outros textos dos evangelhos deixam bem claro que o encontro com Jesus era sempre impactado ou transformador. Costumo dizer que ninguém que se encontra com Jesus é a mesma pessoa mais. Muito, muito mais que uma notícia, o anúncio do evangelho traz consigo a manifestação do poder de Deus. Jesus mostrou isso ao revelar a vida particular da mulher samaritana (Jo 4.16-18). A aplicação pelo Espírito Santo da mensagem de salvação pela fé em Jesus tira vidas do inferno e as coloca no céu (Jo 5.24; Cl 1.13). O próprio Deus concedeu poder aos crentes para pregarem o evangelho e o Espírito Santo concede autoridade sobrenatural para os servos de Cristo testemunharem (At 1.8). O reino de trevas pode tentar atrapalhar a pregação do evangelho, mas não tem poder para impedi-la, nem muito menos superar a autoridade que Cristo concedeu aos seus filhos (Mt 28.18).
O evangelho, quando anunciado, tem poder para transformar vidas (2 Co 5.17), restaurar relacionamentos danificados, produzir paz em um ambiente de medo e insegurança (Rm 5.1-8) e dar esperança a quem está aflito (Rm 8.24-28). O evangelho é mensagem de vida eterna em Cristo e com Cristo (Jo 3.16). É importante destacar que o poder dado à igreja é o que permite que a igreja avance e amplie a ação do reino de Deus. Em Mateus 16.18-19 o Senhor Jesus afirmou que as portas do inferno não terão poder sobre a igreja, pois a ela serão dadas as chaves do reino. Destaco que porta é instrumento de defesa que visa impedir a entrada. Mas a igreja tem as chaves, tem autoridade divinamente concedida. Logo, Satanás não tem poder para paralisar a ação missionária da igreja. Toda oportunidade que o crente tem de testemunhar de Jesus é uma oportunidade de manifestação do poder de Deus. Como estrutura de base doutrinária, verificamos que a missão de evangelizar é um grande privilégio que Deus deu aos crentes. Desta forma, jamais deve ser considerada como meio de vida. Tal conceituação mercantilista reduziria a tarefa-privilégio de todos os filhos de Deus em “profissão” para alguns.
2. A pregação do Evangelho é anúncio da vitória de Cristo
O primeiro anúncio da promessa de mandar o Salvador foi feita pelo próprio Deus aos nossos primeiros pais, após eles terem pecado e quando ainda estavam no Éden (Gn 3.15). É unânime entre os estudiosos o uso da frase “Jesus virá”, como aglutinadora dos 39 livros do Antigo Testamento, e “Jesus veio” para agrupar os 27 escritos do Novo Testamento. Jesus é indiscutivelmente o tema central da Bíblia. As Sagradas Escrituram nos revelam com detalhes a ação divina, ao longo do tempo, providenciando a restauração para o pecador através de Jesus Cristo, plano este elaborado por Deus na eternidade (I Pe 1.19-20). O evangelho se inicia com o anúncio de que Deus planejou e executou tudo o que era necessário para restaurar o estado de desgraça e morte que o pecador se encontra. A execução desse plano, que foi realizada integralmente por Jesus Cristo, exige pregação (Rm 10.13-15). Considere o diálogo de Jesus com a mulher samaritana a beira do poço (Jo 4.6-26). A conversa girava sobre vida pessoal e sobre local de adoração. Observe que havia na mulher o conhecimento da promessa do Messias (Jo 4.25), e o Senhor usou a profecia para revelar a mulher que Ele era o Messias (Jo 4.26). Aquele foi o ponto central de toda a conversa. Ele como Messias se faria pecado em lugar do pecador, morreria a morte que era o castigo para o pecador e concederia perdão e vida para pecadores arrependidos (Is 53.1-10). A pregação do evangelho é o anúncio que Jesus venceu o pecado, a morte, o diabo e seus anjos (Cl 2.14-15; Hb 2.14) e que deseja habitar com seus filhos e filhas, os quais salvou. Por isso, pregar o evangelho é mais do que divulgar a boa notícia de perdão, vida e reconciliação com Deus. É oferta de vida com Deus unicamente por meio da vitória de Cristo. Quem prega o evangelho não o deve fazer em busca de receber recompensa alguma, pois trata-se de tarefa-privilégio.
3 – A pregação do evangelho é tarefa espiritual da igreja
Ao ler o livro de livro de Atos descobrimos o relato acerca de um oficial do exército romano chamado Cornélio que era um homem “temente a Deus” (At 10.22). Esta é uma expressão que qualificava um gentio que se convertera ao judaísmo, mas ainda não fora circuncidado. Como um adepto obediente do judaísmo, ele cria no Messias que deveria vir, orava e adorava a Deus e era generoso para com os pobres (At 10.2), porém não conhecia Jesus Cristo. O texto bíblico revela que um anjo apareceu a Cornélio e ordenou que ele mandasse chamar o apóstolo Pedro (At 10.3-4). Destaco que o anjo não evangelizou Cornélio, mas indicou quem poderia fazê-lo. Nesse fato há uma grande revelação: A evangelização é uma tarefa que envolve o mundo espiritual e impacta a realidade material. No caso do comandante romano, os anjos atuaram em favor da salvação dele, agindo exatamente como está escrito na carta aos Hebreus (Hb 1.14). As Escrituras Sagradas também revelam que o reino de trevas atua de forma contrária, tentando impedir a salvação das pessoas (Mt 13.19; At 13.4-10). Quando um crente pratica a evangelização, há também uma ação espiritual em andamento. Ninguém se converte porque o pregador é “bom evangelista” (bom profissional?). A salvação do pecado exige a intervenção poderosa do Espírito Santo. Envolve a concessão divina de perdão e graça de Jesus, tirando o pecador do reino de trevas e o transportando para o reino de Cristo (Cl 1.13). Como se esperar ou negociar remuneração por apenas obedecer a quem nos salvou da condenação eterna? Não seria muitas vezes mais adequado e justo a apresentação de gratidão do que esperar remuneração?
4. Dinheiro não é prioridade no reino de Deus
Nenhum crente que conhece o ensino de Jesus chamado “O sermão da montanha” (Mt 5,6 e 7) deixará de reconhecer que a busca por dinheiro ou bens materiais não pode ocupar as principais prioridades da vida. Jesus foi muito enfático ao afirmar: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam;” (Mt 6.19). Qualquer intérprete sincero deste texto concluirá que a vida de hoje trafega na contramão do ensino de Jesus. Nesta área, não é absurdo dizer que os crentes estão se igualando e duplicando o estilo de vida do mundo. Pais crentes educam os seus filhos para ser um sucesso financeiro, ou seja, saber para conseguir um emprego/negócio estável, ganhar um bom dinheiro e poder ter coisas nessa vida. Como agiriam pais crentes que ouvissem do seu filho adolescente, perto de fazer o vestibular, a seguinte frase: “Papai e mamãe, eu vou fazer vestibular para licenciatura em geografia”? Quem não ficaria preocupado? Afinal, Mamon (o deus do dinheiro) não abençoa quem é licenciado em geografia! Os pais crentes do século XXI estão deixando de educar os seus filhos para a glória de Deus. A atitude de decidir a vida, tendo dinheiro como o fator de definição de rumos, é pura idolatria! (Mt 6.24). Essa influência diabólica do dinheiro tem atingindo em cheio pastores, missionários e líderes. Via de regra, sempre que uma proposta ministerial é feita oferecendo mais dinheiro, ela é interpretada como bênção de Deus. Qual é o crente, membro de igreja, que antes de dizer “sim” a uma proposta de trabalho mais vantajosa, primeiro leva em consideração “o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6.33)? Quantos crentes simplesmente deixam o ministério abençoador que estão exercendo, para ganhar mais dinheiro em outro lugar ou que exige maior dedicação de tempo? Será que o reino de trevas não pode oferecer dinheiro para desviar um crente do seu ministério? A resposta é sim! Se o dinheiro é fator decisivo no Reino de Deus, então a missão estará sempre submissa ao dinheiro. Não desconsidero a necessidade do sustento material. A minha denúncia é contra a prioridade que indevidamente é concedida pelos servos de Deus ao dinheiro e a busca de segurança. Reconheço que o cumprimento da responsabilidade missionária é continuadamente sustentado através da estrutura material, porém quem vier a concebê-la como meio de vida, inverteu os valores. Pelo evangelho devemos estar prontos até para morrer: “Se alguém quer ser meu seguidor, que esqueça os seus próprios interesses, esteja pronto cada dia para morrer como eu vou morrer e me acompanhe.” (Lc 14.23 – NTBLH), e este princípio é prioritário, está acima da profissão, seja ela qual for.
5. Quem prega o evangelho, que viva do evangelho
Chegamos ao ponto central de nossa reflexão. Identificar o problema e não encontrar uma solução é simplesmente descobrir que se está perdido sem saber para onde ir. Sabendo que a Bíblia não permite orientar a vida em função do dinheiro, precisamos, então, identificar qual é a orientação de Deus para o seu povo no que se refere a busca dos bens materiais e do sustento. Vou abordar a questão em dois focos. Primeiro está a permissão bíblica de se obter sustento para a vida através do evangelho (I Co 9.14). É preciso deixar bem claro que a qualificação “pregam o evangelho” não se aplica ao cumprimento da responsabilidade missionária que pertence a todos os crentes. Tal qualificação, segundo a argumentação do apóstolo Paulo, diz respeito àquelas pessoas que foram divinamente vocacionadas para o serviço ministerial e a este serviço se dedicam inteiramente e com o reconhecimento da igreja (I Co 9.9-13). A essas pessoas, o povo de Deus deve ser o meio de proporcionar a retribuição financeira que lhes proporcione uma manutenção digna. O segundo foco é o ensino bíblico da providência divina para a busca do sustento, o qual inequivocamente abraça o fator prioridade como decisivo para todos (Mt 6.33). Ninguém pode contestar que a prioridade maior de um obreiro que vive do evangelho ou mesmo de um profissional evangélico deve ser a glória e o reino de Deus (I Co 10.31; Mt 6.33). E mais, a questão da garantia divina de sustento diz respeito ao atendimento do necessário (Lc 12.22, I Tm 6.8). Afirmo isto, porque o Senhor não prometeu para o seu povo riquezas e vida fácil neste mundo (Jo 16.33). Alias, quem colocar a busca por riqueza como prioridade maior, encherá sua vida de sofrimentos (I Tm 6.9-11). Entretanto, Deus garantiu que nenhum de seus servos ficará desamparado ou a sua descendência mendigará o pão (Sl 37.25). O ensino das Sagradas Escrituras apresenta o dinheiro e o acesso aos bens materiais como fatores que viabilizam o cumprimento de nossa missão, a qual é a nossa principal prioridade de vida (I Pe 2.9).
Concluindo, percebemos que todos que desejam servir ao Senhor com a dedicação correta e por ele aceitável (Lc 14.23), necessitam estar dispostos a não se igualar àqueles que não tem Deus. Tal diferença se dá na determinação das prioridades da vida (Mt 6.32) e como se gastará os anos de sua existência em busca de ter. Trazendo mais luz para o meu assunto central, os obreiros e pastores, como modelos do rebanho do Senhor, não podem conceber seus ministérios como meio de vida, uma atividade profissional. A pregação do evangelho não é meio de vida para quem não conseguiu espaço no mundo profissional, nem muito menos, a profissionalização do ministério trás maior dignidade. Quem foi chamado para dedicar-se ao evangelho é certo que receberá o seu sustento do evangelho. Porém, quem faz do evangelho o seu meio de vida e vive “pregando melhor para melhor viver”, ou ainda o crente que molda a sua vida ter dinheiro e segurança, descaracterizam a sua vocação, submetem o espiritual ao material e secularizam o que é santo.
Para não terminar destacando o negativo, relembro que o apóstolo Paulo disse a Timóteo: “Se alguém quer muito ser bispo na Igreja, está desejando um trabalho excelente.” (I Tm 3.1 NTBLH). Eis aqui o conceito que não deve ser confundido. Quem prega o evangelho tem um trabalho para fazer, uma missão a cumprir. Este trabalho-vocação é a resposta de servo (escravo) disposto a obedecer, independente das circunstâncias (soa estranho, não?). Deus pode chamar alguns desses vocacionados para serem obreiros que se dedicam integralmente ao ministério pastoral ou missionário e desse trabalho receberem o sustento. Quem define o que fazer, onde fazer e até os termos de como fazer é o próprio Senhor. Pregar o evangelho é responsabilidade de todos, viver do evangelho é resposta provedora de Deus para alguns.
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